SOBRE
Vila o quê?
O ser-humano é uma tábula rasa que vai sendo preenchida através de experiências a que é exposto, diria John Locke[1]. Nesse quadro, a mente e o corpo de uma pessoa são como uma folha em branco, onde o conhecimento vai sendo escrito através das experiências cotidianas, autônomas e pessoais. Através do empirismo o livro da história de cada ser é escrito.
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Em 1979, Antônio Cleofas de Oliveira Bezerra, filho de Antônio e Maria Bezerra se uniu a Anita Braga Bezerra, filha de José Arlindo Braga e Maria Dolorita Fernandes Braga, dando inÃcio ao embrião Vila Barroló. O embrião é a primeira fase no desenvolvimento de um organismo. Nas plantas ele se dá através da semente, nos animais corresponde à s primeiras modificações de um óvulo fecundado, origem de uma nova criatura. A Vila Barroló traz em sua genética a lida com a terra (humus) e o ser (homo + humus = humanus). Sua formação enquanto comunidade rural dedicada à famÃlia e ao artesanato de barro é uma consequência da equação entre tal carga genética e o empirismo.
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A Associação Familiar de Artesãos Ceramistas Vila Barroló é uma comunidade rural localizada no limite entre os municÃpios de VerÃssimo e Conceição das Alagoas, nas reformadas Fazenda Boa Vista e Capão da Onça. O sÃtio onde está colocada, com 25 hectares, foi parar nas mãos de Cleofas e Anita na década de 1990, quando receberam de Maria Dolorita Fernandes Braga e José Arlindo Braga, pais de Anita, o imóvel rural através de doação. Anita se tornou usufrutuária e o sÃtio foi posto no nome dos 15 filhos como parte da divisão de uma herança familiar.
O território tem a particularidade de estar instalado na fronteira entre dois municÃpios, com uma parte do terreno em VerÃssimo e outra em Conceição das Alagoas. Apesar de a maior parte estar alocada na primeira cidade, as relações culturais, comerciais, polÃticas e sociais são feitas maiormente com a segunda.
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Apesar de o sÃtio pertencer à famÃlia desde 1993, das visitas periódicas e algumas atividades de agropecuária e agricultura desenvolvidas no local, considera-se que a fundação efetiva da Vila Barroló se deu somente no momento em que decidiram deixar os compromissos que os vinculavam à cidade para se mudarem para roça. Por esse motivo, a famÃlia entende o ano de 2009 como data inaugural da comunidade. Além das pessoas, trouxeram o maquinário, ferramentas e matéria-prima para não interromperem o trabalho com a cerâmica. Mesmo o galpão sob o qual as peças eram produzidas na cidade, foi levado pra lá.
Desde então, a famÃlia pôde se dedicar de maneira integral ao trabalho com o barro, o cuidado com as crianças, com a casa e no entendimento sobre quais bases culturais a comunidade se sustentaria. A vida na zona rural tornou possÃvel uma relação mais direta da com a terra, trabalhando naquelas pessoas a noção de território e o desenvolvimento de atividades relacionadas ao espaço em que passaram a habitar. O aumento dos membros da famÃlia, com o casamento dos filhos e nascimento dos netos, demandou soluções que vieram através da bioconstrução, da agricultura familiar e do parto humanizado. A proposta de viver em comunidade exigiu dedicação e esforço para elaboração de métodos de trabalho colaborativo, apontando para uma liderança flutuante de acordo com a disposição, experiência e formação de cada membro do grupo. Deram origem à produção cultural além da cerâmica, produzindo fotografia, cinema, teatro, música, dança, capoeira, na elaboração de vestuário.
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Estes termos, no entanto, são calejados pelo seu uso corrente e não abrangem de maneira plena a experiência do referido grupo. Quando falamos hoje em bioconstrução, pensamos em um conceito e imagens pré-definidos. Assim como agricultura familiar, parto humanizado, comunidade sustentável etc. Há estereótipos sobre tais movimentos que direcionam nosso entendimento sobre seu significado. A mÃdia e o capitalismo se encarregam de minimizar a carga funcional desses campos através da exploração e capitalização irresponsabilizada de seus elementos, produzindo e comercializando situações como a de um parto humanizado num quarto esteticamente elaborado de acordo com imagens que encontramos em revistas, filmes e novelas e documentado em vÃdeo por profissionais da área que produzirão imagens bem elaboradas e iluminadas para, enfim, transfigurar a experiência real por detrás do termo numa obra de ficção cientÃfica.
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No caso da Vila o critério de adoção de um termo ou de um campo de trabalho e ação é tido através do acesso à informação, sua deglutição e digestão, que desencadeia um processo semelhante ao da formação de um rio. O conhecimento não é replicado sem antes se tornar parte da própria experiência do indivÃduo por detrás da ação. Desse modo, cada uma dessas instâncias é de algum modo recriada, repensada e reelaborada com a finalidade de esmiuçar o conceito e eliminar replicações infundadas ou fora de contexto.
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Por exemplo, a construção de casas para moradia na Vila Barroló: A bioconstrução oferece diversas técnicas acessÃveis e funcionais para feitura das paredes, como o adobe, super-adobe, tijolo ecológico, taipa, pau-a-pique etc. Tais técnicas, no entanto, se fossem aplicadas na Vila, demandariam o acesso à matéria-prima em outra região – areia, terra, sacos de linho, dentro outros – uma vez que o solo em abundância dentro da comunidade é o cascalho. Este material não se adequa à s técnicas de bioconstrução comercializadas em cursos disponÃveis do setor, nem aos materiais disponÃveis nesse nicho de mercado. Assim, foi desenvolvido na comunidade um sistema de fôrmas com madeirite e cantoneiras que são enchidas com massa de cascalho e cimento. As paredes são subidas em camadas sobrepostas de 50 cm de altura por 25 cm de largura, de acordo com o formato e altura do cômodo a ser construÃdo. O termo bioconstrução não se aplica apenas à utilização de materiais alternativos e naturais para realização de uma obra, mas, sobretudo, prescinde que o realizador disponha destes materiais ao seu alcance. A deturpação do conceito é promovida justamente pelo grupo que descontextualiza sua significância através da comercialização de materiais e modos de fazer.
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A aproximação com essas áreas do conhecimento e o modo como a comunidade lida com a internalização dos conceitos que formam cada uma dessas áreas é resultado da influente história da experiência empÃrica de Cleofas e do modo como ele experimentou sua própria formação. Voltemos ao empirismo de Locke.
[1] Ver Ensaio Acerca do Entendimento Humano (1690), publicação de Jonh Locke que inaugurou a escola chamada de Empirismo Britânico.